O fogo—que temos usado nas nossas casas há mais de 400 mil anos—continua a ser a tecnologia doméstica mais versátil e sustentável que a humanidade alguma vez conheceu. Sozinho, o fogo fornecia o que agora obtemos através de uma combinação de aparelhos modernos como o forno e fogão de cozinha, sistemas de aquecimento, iluminação, congelador, esquentador, secador e televisão. Ao contrário destas novas tecnologias, o fogo não precisava de uma infraestrutura central para o fazer funcionar, e poderia ser produzido localmente a partir de materiais prontamente disponíveis.
Da Lareira Aberta até à Central Elétrica
A utilização usual do fogo data de há pelo menos 300–400 mil anos.12 Até ao século XX, o fogo alimentado a biomassa era o único “aparelho” no lar que utilizava energia—quer as pessoas vivessem numa gruta, numa cabana temporária, ou num edifício permanente. Os primeiros abrigos eram frequentemente construídos com o objetivo explícito de evitar que o fogo se apagasse, protegendo-o do vento e da chuva.
Durante a maior parte da história humana, o fogo surge sob a forma de uma fogueira construída sobre um chão de terra no meio de um abrigo. O fumo do fogo escapava através de uma abertura no telhado. A partir do século XIV, na Europa, a fogueira foi gradualmente substituída por uma lareira ligada a uma chaminé, na maioria das vezes construída contra uma parede.
Em regiões mais frias (como a Escandinávia), as pessoas construíam fogões de cerâmica mais eficientes em termos energéticos, enquanto em climas mais amenos (como os próximos do Mediterrâneo), as pessoas continuavam a usar braseiras—cestos metálicos portáteis nos quais se queimava carvão vegetal. Nos séculos XVIII e XIX, as lareiras começaram a ser substituídas por fogões de metal.
O fogo permaneceu central no lar até ao século XX, quando foi substituído por uma vasta gama de aparelhos ligados a infraestruturas centralizadas. Hoje em dia, nas sociedades industrializadas, mesmo os fogões a lenha tornaram-se raros em casas. A queima a céu aberto tem sido praticamente proibida, especialmente nas cidades. Os novos edifícios já não têm lareiras, chaminés, nem uma abertura no telhado.
O fogo permaneceu central no lar até ao século XX, quando foi substituído por uma vasta gama de aparelhos ligados a infraestruturas centralizadas.
«Paradoxalmente», escreve Luis Fernández-Galiano em Fire and Memory: On Architecture and Energy, «as habitações que começaram como lugares para promover o fogo, hoje evitam a queima aberta».3 Em Fire: A Brief History, Stephen J. Pyne observa que: «Os residentes urbanos podem passar anos sem ver um fogo. Aparece sobretudo por acidente ou fogo posto, e quase sempre como um perigo».4
No entanto, o fogo está longe de ter desaparecido. Milhares de fogos individuais em casas foram substituídos por alguns fogos gigantescos em centrais elétricas. E o fogo também arde noutros locais. «Na nossa economia de abundância», escreve Stephen J. Pyne, «o fogo está no centro da magia—em fábricas, automóveis, casas e centrais elétricas… As cidades modernas continuam a ser ecossistemas propulsionados pelo fogo… Se a combustão parar a cidade para também. Mas o fogo a céu aberto desapareceu. Como um buraco negro no espaço, o fogo moldou tudo à sua volta sem ser, ele próprio, visível».
A industrialização apenas alterou a combustão, não a aboliu. Mais importante ainda, o fogo começou a utilizar outra fonte de energia: os combustíveis fósseis em vez da biomassa. Até ao século XX, quase todos os fogos de origem humana eram produto de fontes de energia renováveis: madeira, relva e estrume. Turfa e algumas utilizações iniciais do carvão eram as exceções.
Fogo versus Eletricidade
A nível mundial, alguns milhares de milhões de pessoas ainda vivem em lares construídos em função de um fogo, muitas vezes sob a forma de uma lareira aberta. Algumas pessoas no mundo ocidental consideram-na uma prática retrógrada e primitiva que precisa de ser abolida—apesar de se basear na utilização de fontes de energia renováveis.
Por exemplo, em 2011, a ONU e o Banco Mundial lançaram a iniciativa Energia Sustentável para Todos, com o objetivo de «assegurar o acesso universal a serviços energéticos modernos» até 2030. 5 O conceito de “serviços energéticos modernos” é vago, mas refere-se essencialmente à utilização da eletricidade e do gás—portanto, na prática, à utilização de combustíveis fósseis.
«Os habitantes dos centros urbanos veem o fogo como algo que outras tecnologias mais avançadas podem substituir».
Iniciativas como esta implicam que “os serviços energéticos modernos” são “melhores” do que a tradicional fogueira ou lareira aberta. «Os habitantes dos centros urbanos veem o fogo como algo que outras tecnologias mais avançadas podem substituir», escreve Stephen J. Pyne. «Se o fogo é um instrumento, eles querem-no modernizado, sem chamas e sem fumo».
Exemplos de tais modernizações sem chama e sem fumo são os painéis solares fotovoltaicos e os aerogeradores de hoje em dia, que supostamente acabam com a nossa dependência dos fogos alimentados por combustíveis fósseis para produzir “serviços energéticos modernos”. No entanto, como é que as lareiras abertas e os “serviços energéticos modernos”—incluindo os baseados em fontes de energia renováveis—se comparam em termos de eficiência, sustentabilidade, saúde e segurança? O que estamos realmente a dizer quando argumentamos que a eletricidade ou o gás são “melhores” do que uma fogueira tradicional?
A Versatilidade do Fogo
Uma razão pela qual as pessoas em sociedades industrializadas consideram o fogo como algo pouco eficiente e insustentável é porque simplesmente não sabem como os seus antepassados o usavam. Se hoje em dia o fogo é considerado ineficaz é porque medimos apenas a eficiência de uma das suas funções, normalmente o aquecimento de um espaço. No entanto, os nossos antepassados não usavam o fogo apenas para se aquecerem. Usavam-no também para cozinhar, iluminação, conservar alimentos, aquecer água, secar roupa e para proteção contra predadores e insetos, entre outras coisas.
O fogo é extremamente versátil, é difícil dizer quais das suas funcionalidades eram mais valorizadas pelos nossos antepassados. Portanto, se medirmos o consumo de energia de uma lareira e o compararmos com tecnologia moderna, não devemos compará-lo apenas a um sistema de aquecimento ou a um fogão, mas sim com o consumo de energia de toda a habitação.
Cozinhar com Fogo
Visto apenas como um forma de cozinhar, o fogo pode acomodar uma ampla variedade de métodos de confeção de alimentos e substituir um elevado número de utensílios de cozinha modernos. O fogo funciona não só como um fogão mas também como um forno. Para assar e grelhar, a comida era colocada no espeto que rodava sobre chamas. A cozedura do pão ou outros produtos era feita num contentor de barro (um “forno Neerlandês”) colocado nas brasas de uma lareira. Em alternativa, era construído um forno separado para a cozedura nas traseiras da lareira, ou como uma estrutura independente no exterior da casa. Para cozer em água e fritar usava-se uma panela pendurada por cima do fogo.67
As funções de muitos pequenos eletrodomésticos de cozinha também eram possíveis de fazer com fogo. Por exemplo, pode-se pensar que as pessoas começaram a comer torradas quando a torradeira elétrica apareceu no século XX, mas antes disso simplesmente seguravam um “garfo de tostar” com um pedaço de pão sobre o fogo. Do mesmo modo, a preparação rápida de bebidas quentes não começou com a invenção da chaleira elétrica; anteriormente, as pessoas imergiam uma ferramenta de ferro incandescente num copo, produzindo bebidas quentes numa questão de segundos. 8
Visto apenas como um forma de cozinhar, o fogo pode acomodar uma ampla variedade de métodos de confeção de alimentos e substituir um elevado número de aparelhos de cozinha modernos.
O fogo também substituía os atuais frigoríficos e congeladores. Em The Food Axis: Cooking, eating, and the architecture of American houses, Elizabeth Collins Cromley descreve como a carne e o peixe eram suspensos durante várias semanas no fumo de uma fogueira para os preservar durante mais tempo.6 Na sua forma mais simples, os nossos antepassados penduravam as suas peças de carne ou peixe na chaminé da cozinha ou—se não houvesse chaminé—por cima da lareira, suspensas do teto. A fumagem do peixe e da carne também podia ser feita numa câmara própria para o efeito, esta era anexada à lareira da cozinha, ou construída a partir da chaminé na cave ou no sótão. O fumeiro podia também ser um edifício separado.
Outros métodos variados de conservação de alimentos estavam dependentes do fogo. As frutas, legumes e ervas aromáticas eram secas pelo fogo se o clima local não fosse suficientemente soalheiro. A adição de açúcar aos frutos e o fabrico de manteiga e queijo dependia do calor de uma fogueira. O sal, essencial para a conservação dos alimentos, era guardado numa caixa pendurada próxima da lareira para o manter seco. 6
Distribuindo Calor e Luz
O fogo não produz apenas calor e fumo—também produz luz. Como fonte de luz, o fogo era tão versátil como a iluminação elétrica atual. A luz de um fogo não se encontrava apenas na lareira, mas também em tochas, lanternas e, mais tarde, velas e lamparinas de azeite. 910O calor do fogo também podia ser distribuído por toda a casa. Embora a cozinha fosse normalmente o único espaço da casa aquecido, as brasas do fogo podiam ser colocadas em aparelhos de aquecimento portáteis, como aquecedores de pés (ou escalfetas) e aquecedores de cama. 11
O fogo também era utilizado para aquecer água para limpezas e lavagens, uma prática que continuou quando apareceram os fogões a lenha de ferro fundido—muitos deles tinham tanques para guardar água quente. Além disso, o fogo dava conta da secagem da roupa, substituindo as atuais máquinas de secar a roupa. As pessoas não começaram a engomar a roupa só quando surgiu o ferro elétrico. Desde a Idade Média, que os nossos antepassados usavam ferros de metal simples que eram aquecidos junto a um lareira ou num fogão, ou um “ferro de engomar a carvão”, que continha brasas no seu interior—alguns deles tinham uma pequena chaminé para manter o cheiro a fumo longe das roupas. 12
Desde a Idade Média, que os nossos antepassados usavam ferros de metal simples que eram aquecidos junto a um lareira ou num fogão.
Havia também a função do fogo como ponto focal de comunicação e de convívio. Durante milhares de anos, a lareira foi o «antigo foco de conversa e a alma crepitante da casa». As televisões e os telemóveis assumiram estes papéis, embora seja duvidoso que tenham o mesmo apelo que um fogueira. Uma série de produtos eletrónicos que imitam os efeitos do fogo—velas e lareiras elétricas, lâmpadas LED com emitam o tremeluzir de uma chama, vídeos de fogueiras crepitantes—parecem indicar que os humanos têm saudades do fogo.
Sustentabilidade e Eficiência
Numa casa construída em torno de uma lareira, a confeção de bebidas quentes e torradas, a secagem da roupa ou a iluminação do espaço não aumenta o consumo de energia da lareira: simplesmente faz um uso mais eficiente do fogo que já existe para outros fins—como o aquecimento de um espaço. Para alcançar o mesmo resultado hoje em dia, temos de ligar vários aparelhos, e todos eles requerem um uso extra de energia: o sistema de aquecimento, o aquecedor de imersão, a torradeira elétrica, a máquina de secar roupa e as luzes.
Além disso, devemos também ter em conta a exploração mineira e a utilização de energia necessária para substituir uma lareira por dezenas de aparelhos produzidos em fábricas, que têm todos de ser distribuídos aos consumidores individuais. Por último, devemos considerar a energia e os materiais necessários para construir e manter as infraestruturas de que estes aparelhos dependem para funcionar, como a rede elétrica e de gás ou a cadeia de refrigeração. Pelo contrário, uma lareira pode ser construída localmente com materiais facilmente disponíveis, e funciona independentemente de infraestruturas centralizadas.
As atuais centrais de energias renováveis, como os painéis solares fotovoltaicos ou os aerogeradores, não abordam devidamente a questão energética: também precisam de ser fabricadas, transportadas, mantidas e descartadas, e implicam que podemos continuar a conceber, produzir e descartar uma gama cada vez maior de eletrodomésticos de forma a satisfazer as nossas necessidades. A eletricidade da biomassa também não tornaria este sistema sustentável: embora elimine a utilização de combustíveis fósseis, perde-se muita energia no processo de conversão da biomassa em eletricidade, e ainda precisamos de fábricas para produzir os aparelhos elétricos e as infraestruturas.
Comparação do Consumo de Energia: Habitações Tradicionais versus Modernas
Se considerarmos a utilização de energia nas habitações europeias de hoje, vemos que, em média, 64% de toda a energia vai para o aquecimento de espaços, 15% para o aquecimento de água, 14% para as luzes e eletrodomésticos, 5% para cozinhar e 1% para outros serviços (incluindo a refrigeração). 13 A maioria destes serviços podem ser fornecidos pelo fogo. Então, como se compara a utilização de energia de uma casa tradicional com lareira com a de uma casa moderna construída em torno de eletrodomésticos e infraestruturas?
Obviamente, o consumo de energia de casas modernas está mais bem documentado do que o dos edifícios e abrigos de tempos passados. No entanto, há estudos que documentam a utilização de energia de casas que ainda dependem de um fogo tradicional.
Se medirmos o uso de energia de uma lareira e o compararmos a tecnologia moderna, essa comparação deve ser feita ao nível de toda a habitação.
Um estudo de 2002 sobre o consumo de lenha em casas tradicionais no Nepal mediu o consumo anual de lenha por família entre 6 e 33 m3, o que corresponde a 35–165 Gigajoule (GJ) de energia. 141516 Este valor parece bastante elevado quando comparado com o consumo total de energia nas habitações contemporâneas, que é de cerca de 75 GJ por ano na Alemanha e cerca de 105 GJ no Canadá.
No entanto, a média dos agregados familiares nepaleses que participaram no estudo foi de 5 a 12 pessoas, enquanto os agregados familiares nas sociedades modernas diminuíram para pouco mais de duas pessoas. Nas famílias nepalesas deste estudo, a utilização de energia situava-se entre 2 e 33 GJ per capita, enquanto outro estudo, mais recente, sobre o consumo de lenha para aquecimento, cozinha e iluminação no Nepal calcula uma utilização per capita anual de 2,5 a 10 GJ.1718 Em comparação, o consumo total de energia doméstica per capita é de cerca de 30 a 40 GJ em países como os Países Baixos, a Alemanha e o Canadá.
10 Mil Milhões de Pessoas à Volta da Fogueira
Mesmo sem ter em conta os recursos adicionais necessários para construir eletrodomésticos e infraestruturas, o consumo de energia numa habitação pré-industrial parece ter sido significativamente inferior ao que é atualmente. De facto, um cálculo rápido revela que—pelo menos em teoria—10 mil milhões de pessoas a utilizar uma lareira aberta como única fonte de energia seria uma prática perfeitamente sustentável.
Assumindo um consumo médio de lenha de 6 m3 per capita, precisaríamos de 60 mil milhões de metros cúbicos de madeira por ano. Um metro cúbico de madeira requer um rendimento anual de 0,2 ha de talhadia, sendo assim precisamos de 12 mil milhões de ha ou 120 milhões de quilómetros quadrados de floresta, se quisermos evitar desflorestação. Isto é três vezes mais do que temos hoje, e cerca de 80% da superfície terrestre do nosso planeta (150 milhões de quilómetros quadrados).
Como não precisamos de espaço extra para fábricas e estradas para distribuir bens de consumo, na verdade poderíamos voltar a usar lareiras sem destruir o nosso ambiente. O mesmo não se pode dizer se 10 mil milhões de pessoas continuarem a utilizar combustíveis fósseis e infraestruturas modernas.
Saúde versus Sustentabilidade
Se não pela sua sustentabilidade ou eficiência, então porque consideramos os “serviços energéticos modernos” superiores a um fogo tradicional? A supressão do fogo aberto nas cidades modernas é apoiada por dois argumentos adicionais: o fogo não é saudável (produz poluição atmosférica) e é perigoso (comporta o risco de um incêndio incontrolável). Estes riscos são reais, mas como é que o fogo se compara aos “serviços energéticos modernos” em termos de saúde e segurança?
Não há dúvida de que a substituição das lareiras por infraestruturas modernas melhorou a qualidade do ar, a saúde e a segurança nas cidades. No entanto, este pode ser apenas um ganho temporário: as infraestruturas modernas são pelo menos tão perigosas para a segurança e a saúde devido à sua dependência dos combustíveis fósseis.
Como é que o fogo se compara aos “serviços energéticos modernos” em termos de saúde e segurança?
Por exemplo, as ondas de calor e os incêndios florestais que assolam a Austrália enquanto eu escrevo este artigo, estão a matar pessoas e a destruir propriedades, e estão a produzir fumo espesso que continua a cobrir algumas das maiores cidades. Estes incêndios não são causados por pessoas que utilizam lareiras. São uma consequência das alterações climáticas, que são principalmente causadas pela utilização de infraestruturas industriais—alimentadas por combustíveis fósseis.
A forte dependência em infraestruturas centrais para tantas necessidades vitais é outro risco para a saúde e a segurança: cortando o fornecimento de energia a uma grande cidade quase tudo deixa de funcionar—incluindo a rede de esgotos, o armazenamento de alimentos e os alarmes antirroubo.
A nossa visão problemática e antiquada do fogo antiquado surge, em parte, da conjugação de dois conceitos distintos: “saúde” e “sustentabilidade”. De facto, algo pode ser saudável, seguro e sustentável ao mesmo tempo, como caminhar—a menos que que não haja calçada. Mas algo também pode ser saudável e seguro mas não muito sustentável (como um frigorífico, porque depende de uma cadeia de refrigeração de alta intensidade energética), e algo pode ser sustentável mas não muito saudável ou seguro (como um fumeiro para carne e peixe numa cave).
Saúde e longevidade são coisas que nós, como indivíduos, “precisamos”, queremos, desejamos ou nos sentimos intitulados a ter. Tal como nos sentimos intitulados a certos níveis de conforto, conveniência, rapidez ou asseio. Por outro lado, definir sustentabilidade exige que questionemos que níveis de conforto humano, conveniência, asseio, velocidade, segurança e saúde o nosso ambiente pode suportar antes que colapse. Podemos escolher segurança e saúde em detrimento da sustentabilidade quando estão em conflito entre si, mas apenas à custa da segurança e saúde das gerações mais jovens e futuras.