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O mundo caótico da fermentação

No momento em que a modernidade atingir o seu apogeu, criando uma realidade estéril, controlada e dissecada, a fermentação dificilmente poderá existir.

Fotografia de nyam nyam.
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Há um momento na vida das frutas e vegetais que sempre me deixou confuso e fascinado. Se deixar-mos um prato de morangos ao ar ou fora do frigorífico, em apenas alguns dias podemos constatar o aparecimento de manchas escuras. Para além disso, talvez comece a surgir uma membrana fina de bolor à superfície do morango. Se removermos a parte bolorenta, este ainda é comestível. No entanto, e de forma inesperada, o morango parece perder a sua vitalidade. Deixa de ser comestível e ganha um sabor amargo. Isto permite-nos observar a transformação do morango de um organismo auto-sustentável, para um habitado de bactérias, bolor e minerais. Este deixa de ser um único indivíduo, tornando-se, assim, múltiplo(s).

Como ocorre este fenómeno? Qual é o momento que nos permite afirmar se um organismo ainda está vivo ou morto? O que é que está na origem da morte, e como é que esta se manifesta de forma tão rápida? De forma extraordinária, conseguimos desenvolver algumas técnicas que nos permitem explorar a fronteira entre a vida e a morte, expandindo-a, tornando-a indistinta. Claro que com isto não me refiro à congelação criogénica, à transfusão sanguínea, à carne produzida em laboratório ou a qualquer outra tecnologia moderna. Refiro-me sim, à fermentação, o processo controlado da decomposição causada por organismos vivos.

Passando do café ao Ketchup, do pão à salsicha e do vinho ao queijo, os alimentos fermentados estão um pouco por toda a parte. Estes tipos de fermentação ocorrem habitualmente em fábricas às quais não temos acesso. As bagas do café são fermentadas antes mesmo de serem torradas. Na fabricação do ketchup, os tomates são primeiro transformados em puré e depois deixados a apodrecer. O resultado deste processo, é depois então aquecido por forma a eliminar todas as bactérias presentes. Na maior parte dos casos, não nos é permitido observar o processo que envolve a fermentação e a transformação de uma forma de vida em muitas outras.

No entanto, podemos fazê-lo. Neste ensaio, eu vou falar-vos sobre a fermentação: o que a torna tão mágica e os motivos que levam as pessoas a ter receio dela. Vou também mencionar as estratégias usadas para a tornar parte da vida diária e os desafios da modernidade que a tornam tão difícil. E, para concluir, vou mencionar a dimensão ética da fermentação - quais os ensinamentos que podemos tirar dela e como é que ela nos pode permitir pensar noutros moldes, dando-nos uma nova perspetiva.

A importância do Tempo

Tomemos como exemplo o nukadoko, farelo de arroz japonês fermentado. Basta combinar sal, água e farelo, podendo também se acrescentar gengibre, fruta cristalizada ou especiarias. Depois, basta acrescentar alguns vegetais como o rabanete, beterraba ou cenouras, colocando-os bem fundo no nosso “solo fértil”. É depois necessário mexer pelo menos três vezes ao dia, de preferência usando as mãos: para acrescentar ao mundo fértil das bactérias uns micro-organismos adicionais presentes na nossa pele. Passada uma semana, temos uma fermentação ativa. Num piscar de olhos, a fermentação vai tornar-se tão forte que bastará uma hora para conservar qualquer vegetal, a que depois chamamos de nukazuke.

Perguntamo-nos, como é que isto aconteceu? O uso do sal contribui para a inibição do crescimento das bactérias e dos fungos considerados como nocivos. Caso não o tivéssemos acrescentado, o bolor começaria a espalhar-se por todo o lado, tornando todos os vegetais impróprios para consumo. Quando o farelo de arroz é exposto ao ar, é necessário misturá-lo. Isto leva ao enterramento dos grãos de farelo, criando um ambiente anaeróbio e assim promovendo a eliminação de qualquer bolor. O fermento começa a consumir os açucares presentes nos vegetais e o nosso amigo Lactobacillus transforma-o em vinagre.

Se fizeres nuka, terás a oportunidade de observar um organismo vivo a transformar-se numa multiplicidade deles. Há apenas uma regra a seguir: para cuidar do teu nuka, é preciso mexê-lo diariamente, por vezes até duas vezes ao dia. O privilégio de estar entre a vida e a morta requer o nosso tempo e dedicação.

Para cuidar do teu nuka, é preciso mexê-lo diariamente, por vezes até duas vezes ao dia.

Rosemary Liss, uma artista que inclui na sua prática a fermentação, descobriu a existência do nuka no Hex Ferments, um coletivo de alquimistas da comida localizado em Maryland, nos EUA. “Tínhamos um vaso e era como se tivéssemos um animal de companhia do qual tínhamos de cuidar todos os dias. Eu adorei este ritual - os gestos e movimentos - que me davam a impressão de ser uma dança. Todos os dias tirávamos a panela pesada da prateleira, retirávamos o tecido invólucro colorido e depois, retirávamos os picles, antes de arejar o farelo e acrescentar vegetais frescos ao preparado para um breve repouso lático.”

No Japão, o nuka é passado de geração em geração: cada um deles revela sabores distintos. Estes tornam-se microbiomas únicos, que apenas sobrevivem graças ao trabalho diário de avós, mães e filhas. A elas temos de estar gratos por este presente precioso e raro.

No entanto, a magia quotidiana pode rapidamente desvanecer quando nos tornamos demasiado precisos. Quando a Liss teve a oportunidade de começar uma residência no Nordic Food Lab, decidiu trabalhar com o nuka. Ela passou meses a tentar aperfeiçoá-lo para se adaptar ao contexto nórdico. Como a própria denota: “Quando este processo foi transferido da ambiência vibrante do Hex, para o laboratório onde recipientes em plástico alimentar estavam disponíveis para uma investigação controlada, senti que a magia tinha desaparecido”.

Há algo de inexplicável na fermentação que transcende as ciências exatas: ela pede para ser integrada no ritmo da vida quotidiana. Este é um ritmo errático, embebido na cultura, na tradição e nos seus costumes.

Soluções Low-Tech para desafios modernos

Quando começo a falar com alguém que nunca experimentou a fermentação, habitualmente perguntam-me se é muito diferente do processo de transformação em conserva. Segundo o Alex Lewin, autor do livro Real Food Fermentation and Kombucha, Kefir and Beyond, a fermentação é exatamente o oposto: “É completamente diferente do processo de transformação em conserva - com a conserva todo os micróbios são eliminados e a embalagem é selada hermeticamente. Por outro lado, a fermentação permite acolher alguns micróbios, deixando de fora aqueles que não nos interessam. A fermentação é o equivalente à diplomacia e a conserva é o massacre total. O processo de transformação em conserva é uma tecnologia de transformação alimentar de ponta.”

Fotografia de nyam nyam.
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A conserva requer a utilização de vidro e a transformação e manipulação de metal de formas bastante precisas. Estes fatores tornam o processo de transformação em conserva um fenómeno moderno. Parte do conceito associado à modernidade é que, por forma a resolver os nossos problemas, precisamos de recorrer a mais soluções de tecnologia high-tech. Mas grande parte dos nossos problemas são causados por ela - basta olharmos para o armamento nuclear, a poluição atmosférica, as alterações climáticas e a indústria do desperdício alimentar. Por outro lado, a fermentação é uma tecnologia low-tech. Não é preciso ser-se especialista, nem utilizar tecnologia de ponta, para se conservar alimentos. Tudo o que é preciso é um balde, sal e confiança no universo das bactérias e dos fungos.

Um dos charmes associados à fermentação é que ela pode ajuda-nos a combater o desperdício alimentar. O nosso sistema moderno de alimentação conduz a um elevado desperdício. Nos EUA, 30 a 40% da comida tem por destino um aterro sanitário, e desta percentagem, 21% provem do consumo doméstico. Para além disso, tem também um consumo energético super elevado: 33% das emissões de gases com efeito de estufa são causadas pela agricultura. Se os consumidores aprendessem a fermentar em casa, poderiam aprender a conservar a sua comida, evitando assim, cozinhá-la ou congelá-la - ambas com um consumo enérgico mais elevado. E é assim que surge uma solução low-tech para um problema high-tech.

Receio de não ser capaz de cuidar

Se a fermentação é assim tão simples, rapidamente somos levados à questão:  porque é que não se trata de uma prática mais comum? Para escrever este artigo e para tentar dar resposta a esta questão, procurei informar-me junto de amigues e amigues de amigues com experiência regular em fermentação. Perguntei-lhes os motivos que os levaram a começá-la e os motivos que levam a grande maioria das pessoas a não o fazer.

Ariadna Rodriguez e o Iñaki Alvarez gerem o nyam nyam, um coletivo artístico localizado em Barcelona, Espanha. Como muitos outros que entrevistei, eles foram em grande parte inspirados por Sandor Katz, escritor de livros tais como Wild Fermentation e The Art of Fermentation. Quando lhes perguntei porque é que algumas pessoas têm uma reação tão negativa à fermentação, eles responderam-me, citando-o: “As pessoas projetam na fermentação as suas ansiedades e medos relativos às bactérias. O mais irónico nisto tudo é que estas sempre foram uma estratégia para a segurança alimentar.”

Eles também acham que isto se deve a outro motivo: o medo de fazer asneira. Como eles próprios dizem: “As pessoas têm medo de ter de cuidar de outros micro-organismos, arranjando desculpas para não o fazer como o esquecimento, ou a necessidade de viajar. Eu acho que tem muito mais a ver com o ser-se responsável, uma palavra com um peso enorme nos dias de hoje, muito em parte devido ao facto da indústria alimentar nos ter retirado essa responsabilidade, ao preparar produtos que apenas precisam de viajar do frigorífico até à nossa frigideira.”

Crescemos a ouvir histórias de horror/terror sobre o botulismo e conservas perigosas e acabamos por não nos dar conta de que a fermentação é um processo bastante diferente.

Lina e Adam Esbold, um casal sueco, partilham da mesma perspetiva. “A grande maioria das pessoas” - dizem eles - “são céticas, não gostam do sabor ou sentem-se desencorajadas pela ideia de bactérias saudáveis… há ainda uma grande parte apenas que não quer saber.” A artista Rosemary Liss, também acha que isto tem algo a ver com o receio das pessoas associado à segurança alimentar. “Eu acho que o receio de ser contaminado e ficar doente é um dos maiores obstáculos. Crescemos a ouvir histórias de horror/terror sobre o botulismo e conservas perigosas e acabamos por não nos dar conta de que a fermentação é um processo bastante diferente.”

Para o Mark Reynolds, que gere o Naughty Nettle Medicinals, “A falta de experiência ou conhecimento empírico é um fator importante neste desconhecimento. Existem aqueles que experimentam uma vez e que, ao primeiro sinal de bolor, desistem e não voltam a fazê-lo.” E, no entanto, há muita gente que fica super entusiasmada com a aprendizagem do processo de fermentação e o quão esta requer uma responsabilidade relativamente reduzida. Lewin descreve-nos o momento em que ele tomou conhecimento da fermentação através do livro do Sandor Katz. “Fiquei absolutamente perplexo - como é que é possível fazer algo assim com a comida? Basta apenas cortar alguns pedaços de couve e deixá-los no balcão durante um mês? Como é isto possível? Parte daquilo que me seduziu foi o gesto rebelde que isso implica, ao não precisar de recorrer ao frigorífico para os preservar”.

A morte como parte integrante da vida

Habitualmente, encontro pessoas que tentaram lançar-se na fermentação, mas que rapidamente se esqueceram dela ou ficaram desencorajadas pelo medo de poderem ter falhado. Como resultado disso, não é raro encontrarmos armários cheios de kombuchas esquecidas e frigoríficos repletos de kefir e massa mãe por nutrir.

Começar a fermentar é fácil, mas o problema que esta pode perder rapidamente a sua aura, e acabar por se tornar motivo de embaraço. Rodriguez e Alvarez, observam que muitas pessoas ficam com receio de não ter tempo para “colaborar” com estes microorganismos. Mas, como eles dizem: “a coisa boa é que podes sempre começar de novo; acrescentas novo chá à tua kombucha e tudo estará bem. Então, é como dizemos: “há males que vêm por bem.”

Lina Esbold e Adam Karlsson dizem que tudo o que é preciso é manter o equilíbrio e deixar-se ir. “Por vezes, a fermentação requer mais tempo e energia, mas noutras ocasiões, podemos deixar as culturas enfraquecer.” O que é perfeitamente OK. Lewin aprendeu a conservar os seus projetos bem à vista: “Uma coisa que eu faço é deixar à vista todos os meus projetos de fermentação. Sempre que entro na cozinha, vejo-os. É para mim como a jardinagem: vais de vês em quando ao exterior, dás uma olhadela e uma mexidela rápida de vez em quando.”

Fotografia de nyam nyam.
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Existem também vários truques que podes utilizar para manter a fermentação bem ativa. Se um bolor esbranquiçado aparecer, remove-o e abana o recipiente. Lewin observa que mesmo que tudo dê errado, “podemos facilmente identificá-lo: o aparecimento de esporos verdes esponjosos são o sinal de que o devemos deitar fora. Se nunca provaste kombucha ou kimchi e, portanto, não sabes a que sabe ou se o sabor é o esperado, das duas uma, ou arriscas, ou procuras alguém que já o tenha provado.”

Vai chegar provavelmente um momento em que te vais fartar de todo o processo. Não te aflijas. A solução passa por parar a fermentação colocando-a no frigorífico ou, melhor ainda, no congelador. Fermentos para fermentação podem também durar vários anos quando secados. Quando estiveres de novo motivado para recomeçar, basta acrescentares o que precisares (açúcar e chá para a kombucha, leite para o kefir, ou farinha para a massa mãe). E contudo, mesmo que dês o teu melhor, nem sempre é fácil manter uma prática constante de fermentação. O nosso trabalho e escola deixam-nos a vida de pernas para o ar: trabalhamos das 9-5 e chegamos a casa exaustos. Para aqueles que trabalham com horários irregulares, é difícil criar a rotina e os hábitos diários necessários à manutenção da massa mãe, o iogurte ou o kefir.

E depois há o sistema alimentar. O supermercado é o anátema da fermentação:  as culturas de fermentação produzem dióxido de carbono e metano, o que leva à disseminação de maus cheiros nos corredores e à infiltração através das embalagens. Por outras palavras, é simplesmente caótico e bizarro. Parcialmente devido ao facto de que a oferta alimentar a que temos acesso é limitada àquela oferecida pelos supermercados. Não é de todo fácil conseguir obter grãos de kefir ou kombucha mãe. E quando de facto os conseguimos obter, é difícil de encontrar orientação. Se não conheceres alguém já com experiência que te possa guiar, os primeiros passos para te lançares podem ser bastante intimidantes.

A nossa sociedade encontra-se também bastante afetada por algo que os investigadores alimentares nomeiam de desespecialização. A maioria das tradições alimentares transmitidas de geração em geração já estão quase inteiramente perdidas. O que subsiste é um semblante das tradições de outrora: pickles fermentados passam a conserva; molhos ricos em caráter e variedade passaram a ser, simplesmente, ketchup.

O supermercado é o anátema da fermentação:  as culturas de fermentação produzem dióxido de carbono e metano, o que leva à disseminação de maus cheiros nos corredores e à infiltração através das embalagens.

Uma parte disto deve-se à industrialização do sistema alimentar, mas também está amplamente associada à maneira como a economia molda as nossas vidas. Há algumas gerações atrás, a maioria dos ocidentais vivia em habitações multi-geracionais, onde as crianças viviam com os avós, várias famílias habitavam em co-habitação e havia um cultura de rua vibrante que brotava de habitações densamente populadas e do recurso à deslocação a pé como a principal forma de transporte. Com o advento da modernidade, todas as tradições, rotinas e relações estão em constante transformação e desaparecimento.

E apesar da ciência nos ter revelado formas inovadoras de entender a comida que consumimos, esta também apresenta várias limitações. Ficamos com a impressão que, a cada semana, um novo estudo inovador coloca em causa todos os critérios pelos quais nos guiamos no que toca a alimentação. Crescemos habituados à ideia da existência de uma data de expiração dos produtos alimentares - colocando toda a nossa confiança num processo aparentemente invisível e definido por especialistas. Apesar de termos acesso a avanços científicos que nos permitem compreender os processos invisíveis que ocorrem nas nossas cozinhas e no interior do nosso corpo, continuamos a conservar uma atitude cultural de receio no que toca a “brincar” com a nossa comida - atitude esta que inibe os micro-organismos de se multiplicarem nas nossas cozinhas.

Ao falar com uma amiga sobre isto, Jyotsana Singh, ela observou que falta a perceção do senso comum do momento em que a comida se estraga e quando é seguro ou não consumi-la. Segundo ela: “as pessoas não confiam nos seus sentidos”. O que acaba por ser irónico, quando temos tanta informação disponível “à distância de um clique”. Na sua família, para confirmar se o leite estava ou não bom para ser consumido, bastava cheirá-lo. Talvez devendo-se a este conhecimento desenvolvido ao longo da sua vida, e a um conhecimento básico de química e biologia, ela raramente tem receio quando cozinha. À medida que conversávamos, acabamos por concluir que existe uma importante distinção entre hábitos - do tipo que nos permitem fazer a fermentação numa base diária; senso comum - uma intuição dos processos que acontecem para lá do que observamos, informados pelo conhecimento científico e cultural; e a tradição, onde as nossas origens nos levam a sentir-mo-nos mais confiantes em relação àquilo que comemos e cozinhamos. O segredo para uma abordagem equilibrada à fermentação encontra-se, talvez, no cruzamento destas duas práticas.

Se nos debruçarmos sobre o assunto, através deste prisma, a fermentação revela uma dimensão política. As nossas vidas profissionais tornam difícil a incorporação destes hábitos quotidianos. O sistema moderno de alimentação atrofiou por completo os saberes ancestrais e as tradições associadas às práticas de preservação alimentar. Tendo isto em conta, é fácil perceber o porquê de tantas pessoas não conseguirem integrar a fermentação na sua vida quotidiana. Só num mundo diferente é que a fermentação poderia se tornar a norma.

Pensar (com) a fermentação

O organismo vivo está sempre na iminência de se transformar num processo químico: oxigénio, hidrogénio, sal, num ciclo constante de potência e sublimação; e apenas na morte e na doença este pode ocorrer. Todo o ser vivo está continuamente exposto ao perigo, e dentro de si alberga continuamente um ser outro… -G. W. Hegel, A Filosofia da Natureza

A política… surgiu da fermentação quotidiana da mundanidade da vida da Ágora. -Murray Bookchin, Urbanização sem Cidades: a Ascensão e o Declínio da Cidadania

Tal como Hegel constatou há dois séculos atrás, o nosso ser é constituído de muitos outros. O que leva o corpo a preservar a sua integridade, apesar de rodeado de um perigo constante? A prática da fermentação levanta este tipo de questões e leva-nos a pensar numa outra forma de encarar a ética associada ao ser.

Para Rodriguez e Alvarez, começar a fermentar permitiu-os descobrir um emaranhado de conexões intrínsecas à vida. “É como se tudo fizesse parte da mesma realidade”, dizem-me, quando lhes pergunto de que forma é que a fermentação é agora parte integrante do seu quotidiano: “Consumindo-la. Temos sempre à refeição um elemento resultante da fermentação. Tomamos conta de todos os microorganismos com os quais co-existimos, ora retirando o chá da Kombucha, ora mudando a água e acrescentado açúcar à água do Kefir, ora degustando os pimentos em fermentação em plena luz solar, ora abrindo esporadicamente o miso, e a lista poderia continuar.”

Fotografia de nyam nyam.
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Todos estes pequenos rituais permitem-lhes observar “toda a atividade efervescente que ocorre em escalas distintas mas interconectadas entre os vários agentes, os nossos corpos e os microorganismos.” A fermentação alterou também a forma com que Lewin’s passou a encarar a vida. “A fermentação estabelece um equilíbrio dinâmico de micróbios - realidade com a qual a maioria das pessoas se sente desconfortável. Num mundo em que tudo se desenha de forma muito precisa e transparente, por forma a ser compreendido e dissecado, é natural que as pessoas não se sintam confortáveis a dar um passo tão imprevisível. Eu acho que é uma ótima forma das pessoas deixarem de estar tão dependentes dessa necessidade do previsível. Talvez não precisemos de medir tudo com precisão milimétrica, talvez não precisemos de deter o controlo absoluto sobre tudo aquilo que nos rodeia.”

Talvez não precisemos de medir tudo com precisão milimétrica, talvez não precisemos de deter o controlo absoluto sobre tudo aquilo que nos rodeia.

Na prática da fermentação, precisamos de multiplicar experiências, não somente com bactérias e fungos, mas também entre nós, seres humanos. A aprendizagem da fermentação implica a partilha que acontece apenas na interação humana, e o conhecimento que a ciência e a cultura nos ensinam. No entanto, estas não são suficientes, se nos faltar senso-comum. Este surge através da interação humana. Na Grécia Antiga, desconhecidos encontravam-se na ágora, o mercado municipal, para debater ideias. Era nesses lugares que a política acontecia, e a aprendizagem brotava das conversas que por lá surgiam. Por um lado, a ágora era um lugar de desordem, um sítio banal, mas por outro lado, foi também onde se fundou o sistema democrático de Atenas. Por vezes, dou por mim a pensar: que tipo de alimentos fermentados seriam vendidos lá, e que tipo de discussões políticas poderiam ter eles gerado?

No momento em que a modernidade atingir o seu apogeu, criando uma realidade estéril, controlada e dissecada, a fermentação dificilmente poderá existir. Quem diz fermentação, diz liberdade de expressão: aquela que brota de um lugar de incerteza, em que a complexidade é bem-vinda, e das relações que se multiplicam ou da subtil exploração dos contornos que separam a vida da morte. A vida moderna transforma a prática da fermentação numa atividade penosa e pouco intuitiva. Mas é precisamente através dela, que podemos redescobrir uma nova perspetiva e entendimento sobre o mundo. Um mundo onde a fermentação passa a fazer parte da nossa vida quotidiana e que, apesar da imprevisibilidade que esta implica, nos poderá também levar a cuidar melhor de todas as formas de vida com as quais co-existimos. Talvez pudesse ser um mundo onde fosse permitida a contemplação, levando-nos a ponderar sobre a transição da vida para a morte, ao invés de a temermos, ou a procurarmos esconder.

Este artigo foi escrito pelo Aaron Vansintjan como parte de uma colaboração entre a Low-Tech Magazine e nyam nyam, um coletivo artístico localizado em Barcelona (Espanha). O artigo faz parte do projeto “Serão os microorganismos os detentores da última palavra”, selecionado para um projeto do Barcelona Producció 2017. As fotografias foram tirados pelos nyam nyam.

Aaron Vansintjan escreveu diferentes artigos para as revistas No Tech Magazine e Low-tech Magazine. Mantém um blog no domínio Uneaven Earth.

Este artigo surgiu originalmente na No Tech Magazine.